O mundo a seus pés

Persistência, foco e vontade de fazer acontecer resumem a trajetória de Amyr Klink, comandante e colecionador de embarcações brasileiro. Em 1984, aos 28 anos, fez a primeira travessia solitária a remo pelo Atlântico Sul. A bordo do barco I.A.T, construído por ele mesmo, o navegador remou da Namíbia até a costa da Bahia. Atualmente já realizou 15 viagens à Antártica e viaja pelo Brasil e mundo compartilhando suas experiências em palestras e livros. Confira a entrevista concedida pelo aventureiro para a Expo Magazine:

O que fez com que você virasse um navegador?

Foi a literatura. Quando estudava economia comecei a fazer um curso de francês e descobri uma livraria em São Paulo que se chamava Livraria Francesa. Lá tinha uma coleção chamada “Mer et Aventures” (Mar e Aventuras, em francês). Eu gosto muito de línguas e me encantei pelos relatos. Depois quando fui morar em Paraty acabei conhecendo alguns dos protagonistas de livros que eu já tinha lido e, assim, aos poucos, fui me envolvendo com o mundo dos viajantes, dos navegantes. Quando fui morar em Paraty ainda não tinha nenhuma conexão com o mar. Meu pai tinha um monte de fazendas na cidade, íamos muito para lá e me encantei pela conexão natural com o mar, mas não entendia nada de barco. Só vim a descobrir o mundo náutico depois de velho. Foi assim, através de livros que me encantei pelo mar. Eu sempre falo que se continuasse morando em Paraty, eu teria cracas e ostras nas canelas de tanto ficar na beira do mar, mas nunca navegaria. Infelizmente o brasileiro tem essa proximidade com o meio que ele não conhece. O brasileiro não gosta de mar.

Por que você acha isso?

Ninguém navega. Você vai para o Rio de Janeiro agora, ou em um sábado, não tem ninguém navegando. Eles vão para a praia, praia não é mar. Eu particularmente detesto praia. Você não encosta, não atraca e Paraty tinha essa beleza da encosta, das pedras na beira do mar, dos lugares abrigados.

O que mais te encanta nesse meio do caminho?

A possibilidade de conectar lugares distantes do planeta. Não é nem da experiência do contato com o mar, é da experiência de poder ir para o outro lado do mundo. Eu vou da porta da minha casa para o Opera House, em Sidney. Eu vou da porta da minha casa para o Japão. Da porta da minha casa para o Píer 26, em Nova York. É essa possibilidade de se conectar a lugares distantes. E eu acho que foi isso que me encantou no começo, porque eu via muitos barcos chegando em Paraty que vinham de muito longe e eram barquinhos feitos no quintal de casa.

Por que e o que na sua trajetória você acha que mais inspira as pessoas?

Eu acho que todo mundo gosta de viajar e tem dificuldade de perceber que tem vários meios para fazer isso, sem necessariamente precisar de fundos e mundos. O mar é um desses meios. No Brasil a atividade náutica é vista como uma atividade de elite, de gente rica e é um fato. Mas é um fato equivocado também. A gente vive em um país ignorante, mas ao mesmo tempo temos alguns dos barcos mais revolucionários do mundo e que os brasileiros não reconhecem. A jangada de Piúva, as jangadas de dois mastros, os saveiros de pena da Bahia, os barcos de Santa Catarina, do Maranhão, temos embarcações absolutamente únicas, com características completamente diferentes e maravilhosas e 99% dos brasileiros simplesmente desconhecem.

E essas embarcações não foram feitas por engenheiros?

Não, mas eles são engenheiros de verdade. São analfabetos, mas têm um saber e um modo de fazer que infelizmente não é conhecido. Ao longo dos anos eu tentei mostrar isso, quando a gente inaugurou o Museu Nacional do Mar. A ideia não era mostrar a cultura brasileira, e sim a riqueza do conhecimento brasileiro que não é identificado pela grande maioria.

Para completar a travessia foi necessário muito planejamento e a busca por soluções inteligentes. Como foi esse processo?

Foi muito dolorido. Cada vez que eu falava o que pretendia fazer ouvia “ah mas você vai morrer”. Nessa fase, até eu mesmo falei nossa esse negócio é impossível. Mas depois, quando me encantei pela ideia, percebi que era uma espécie de jogo. Tinham muitos problemas para resolver: o problema da resistência física do barco, da altura das ondas, da alimentação, da comunicação, da navegação e cada problema tinha uma solução. Depois eu descobri que vários navegadores tinham tentado atravessar outros oceanos e morreram por razões completamente insólitas, por erros no planejamento. Ninguém morreu de cansaço ou por causa das tempestades e eu achei aquilo incrível. Aos poucos fui me envolvendo com a ideia, me encantando, pensando nas soluções. O problema dos alimentos, por exemplo, foi resolvido com o uso de desidratados e, de repente, eu estava envolvido. Então foi um processo lento, um pouco complicado, mas também foi gratificante. Eu resolvia um problema e vinha o próximo. No mar não tem caminho mais curto, tem o caminho ideal que é o que tem menos contrariedades.

Em algum momento você achou que estava fazendo uma loucura?

No começo eu pensei. Mas depois que comecei a viagem não porque foi tão difícil a fase de planejamento, foram tantos problemas burocráticos, técnicos, financeiros e diplomáticos que encontrei. Quando a viagem começou pensei “nossa finalmente agora é só remar”. Remar foi a parte mais fácil da história.

Quais você acha que foram as principais características da sua personalidade que fizeram com que você enfrentasse todos os obstáculos que surgiram?

Eu tive muitos problemas com as autoridades africanas, Namíbia e África do Sul. Tive mais problemas ainda com as autoridades brasileiras, porque o barco teve que ser exportado e o processo na época foi altamente complexo. Eu despachei o barco para a África e a documentação nunca ficou pronta. Levou 20 anos para regularizar esse barco, por incrível que pareça. Mas eu acho que a característica mais importante para ter efeito com êxito a viagem foi a persistência. Eu fui cabeça dura, foi uma experiência que exigiu muita persistência. Eu cometi vários erros, tive que refazer o projeto. Fui lesado várias vezes, paguei a madeira para o estaleiro que iria fabricar o barco, o estaleiro sumiu com o dinheiro. Eram situações bem desagradáveis.

Você pensou em desistir?

Até pensei. Mas começava de novo. Então, eu reparei que hoje em dia a gente vive uma situação onde todo mundo quer tudo rápido. Ninguém se dedica assim a fundo a fazer alguma coisa acontecer e essa é uma característica interessante do mundo moderno.

Como você acha que é possível encontrar soluções criativas para problemas?

A escassez. A escassez é a mãe da criatividade. Quando você vive em um ambiente que tem fartura de soluções, recursos, dinheiro e comida você fica pródigo, começa a desperdiçar. É muito fácil compreender a escassez dentro de um barco. Todos os recursos são finitos, não tem redundância, a energia é limitada, a água é limitada, tudo é limitado. É preciso utilizar tudo com muito critério, muito cuidado e isso acaba desenvolvendo uma espécie de cultura da eficiência, do não desperdício, do respeito. Outra característica que eu adoro, e o pessoal dá risada quando eu falo, mas a principal qualidade de barcos é que eles afundam. Você está em um ambiente que tem certeza das consequências se não fizer a sua parte direito. E essa certeza da consequência, da punição, é muito educativa. No mar você não tem direitos, só deveres. O dever de cumprir a sua meta todos os dias, de resolver o problema do dia antes que afunde. Você cumpre a sua parte e vai aonde você quer. A gente vive hoje uma cultura meio protecionista, paternalista, onde todo mundo só pensa nos seus direitos e ninguém se dedica com afinco a executar as tarefas que são necessárias. A gente tem acesso a todas as informações e eu acho que esse é o problema mais dramático para a geração Y. Eles já tem acesso à fama, à glória, ao conforto, ao benefício e não querem percorrer o caminho. O caminho é demorado, é chato. É um mundo que tem muitas oportunidades, mas também é tão fácil o acesso a todos os níveis de êxito que a maioria das pessoas não tem paciência de percorrer o caminho.

O que você acha que uma pessoa precisa ter para lidar com situações extremas? Você acha que hoje em dia é difícil encontrar pessoas assim?

Eu acho que tem que ter um apego muito grande, foco e é difícil ter foco. Minhas filhas tem de 18 a 21 anos, já estão na faculdade e ainda não sabem o que querem fazer. Eleger alguma coisa para fazer e fazer com afinco é um caminho muito bacana, mas é um caminho difícil quando se tem tantas opções, possibilidades de mudar. Ninguém mais se dedica tão profunda e contundentemente a um único tema ou assunto. Ao mesmo tempo, pessoas que conseguem se aprofundar num tema por mais fútil que pareça, prosperam, se destacam da maioria. Eu acho que vivemos em um mundo com tanta informação, que exige formação para que a gente possa eleger os caminhos.

E como você acha que é possível conseguir essa formação?

Eu acho que estudando, lendo, se informando, para poder eleger um caminho e não ficar na tentação do que está mais perto ou mais fácil. E essa é uma atitude difícil, são tantas possibilidades. Mas, também, temos ferramentas incríveis de comunicação hoje em dia. Qualquer pessoa que tem um mínimo diferencial acima da média e consegue publicar isso, mostrar isso, de repente vira um fenômeno. Estamos vivendo uma época muito interessante, onde a informação trafega a velocidades espantosas.

Você já disse que teve muita sorte. O quanto você acha que a sorte pode influenciar na vida das pessoas?

Eu acho que a sorte, de certa maneira, você constrói na medida em que persiste, na medida em que se torna pró ativo, na medida em que tenta ser protagonista e não um simples observador.

No mar se você fizesse as coisas mais ou menos correria grandes riscos. Como você traria esse pensamento para o mundo atual?

A gente vive em um país com tantos problemas estruturais, culturais, de formação. Temos tantas deficiências de formação, deficiências estruturais, sempre vivemos no modo de sobrevivência. Nos acostumamos a fazer tudo de qualquer jeito e na minha atividade não tem de qualquer jeito. Ou você faz bem feito ou você morre. E a gente não tem essa preocupação nem com a excelência nem com o outro. Essa preocupação com a excelência, com fazer bem feito, eu acho que é um diferencial muito importante e eu gosto disso. Fazer bem feito não é fazer sofisticado, é fazer sempre um pouquinho melhor, as vezes é fazer dentro do orçamento, é fazer mais simples. E a gente não tem essa cultura. Tudo o que você fez até hoje, amanhã você pode fazer melhor. E no mar isso significa um esforço de atualização do pensamento, das soluções técnicas, que não vai necessariamente do uso da máxima tecnologia e sofisticação. Às vezes, vai no uso inverso. Hoje em dia os barcos mais modernos do mundo não tem mais terminais de titânio para prender, tem fita, lacinho, você amarra com lacinho de Kevlar. É muito mais eficiente do que um terminal usinado, de titânio, e eu adoro isso. Na minha atividade a gente mistura as duas coisas. Usamos muito o conhecimento acadêmico e, também, essas astúcias da experiência prática. Claro que eu não vou usar um pau de Gororoba em um barco de 20 milhões de dólares, mas a ideia de um mastro de Gororoba autoportante, flexível, eu posso reproduzir em fibra de carbono. A gente vai estudar os barcos da Amazônia por exemplo. Mas por quê? Porque ninguém no planeta faz distâncias maiores do que as embarcações da Amazônia. A formação técnica deles, a cultura tecnológica deles é miserável, mas a experiência prática deles é monumental. É impressionante o que eles fazem lá.
Você acha que o empreendedorismo, a mente empreendedora é uma característica dessas pessoas?
Mais num sentido mais de sobrevivência do que de negócio. Está na moda agora ser empreendedor. Eles não querem ser socialmente bem sucedidos, e sim resolver o problema. Eles tem uma capacidade criativa que eu acho muito importante para o empreendedor e essa é uma característica brasileira que é muito mal reconhecida e pouco valorizada. O brasileiro é muito criativo para sobreviver.

E qual você acha que foi o segredo do seu sucesso?

Eu não sei se eu tive sucesso, só sei que eu não morri e cheguei onde queria chegar. Acho que gosto do que faço e quero fazer mais. Para isso preciso ser mais rico do que sou e tomei uma decisão, há uns dois anos, de que vou perder a vergonha de dizer, que eu gosto de ser muito rico. Quero poder fazer o que eu gosto de fazer e não o que eu sou obrigado. Eu gosto de ficar um ano sem fazer nada, um ano na Antártica, por exemplo. E para poder fazer isso percebi que vou ter que não ter mais nada. Meu objetivo em quatro anos é não possuir mais nada. Não quero ter mais nada, nenhum imóvel no meu nome. Hoje é possível você ser proprietário só do benefício e não do bem. E é isso que está apontando, na minha visão, para uma nova ordem do compartilhamento. Eu espero que daqui dois anos eu consiga não ter casa. Eu quero alugar minha casa e pagar pelo uso. Essa é uma transformação que eu acho sensacional e está acontecendo em diversas áreas como no mercado imobiliário, bens de consumo, serviços. É engraçado que as novas gerações estão entendendo isso quase que intuitivamente. Não é preciso mais ter as coisas. Você quer ter o tempo, a conectividade, o benefício e não tem mais que se prender a posse física das coisas. Muitas das grandes corporações não entenderam isso ainda, e elas vão morrer. A Volvo, por exemplo, o objetivo deles é fazer carros seguros. Ser seguro hoje não é um diferencial, é uma obrigação. Eles são provedores de mobilidade, é diferente. Eles são provedores de uma mobilidade complexa que envolve prazer, gosto, segurança, envolve várias coisas.

E o que você acha que precisa fazer para alcançar esse objetivo de não ter nada?

É difícil. É um processo muito difícil me desvencilhar de tudo que me consome tempo. Eu não quero mais ser o proprietário das empresas que tenho, mas quero ter o pró labore. A rentabilidade dessa empresa eu quero. Eu quero decidir o caminho dela? Quero. Eu quero ser o dono dela? Não. Eu quero ter mais tempo para usar os recursos para fazer o que eu gosto que é viajar. Estamos separando toda a parte física, por exemplo, patrimonial da operação. O negócio gera riqueza, o ativo físico viabiliza essa geração sem estar uma coisa fisicamente conectada com a outra. E hoje isso é possível. Os bancos até 20 anos atrás eram empresas imobiliárias, de repente eles entenderam que o negócio deles é comprar e vender meios de pagamento e não ganhar dinheiro com valorização imobiliária. E aí o que eles fizeram? Eles desmobilizaram e alugam os ativos físicos que precisam. É mais ou menos isso. Eu ainda tenho essas coisas físicas, mas estou diminuindo elas numa velocidade muito grande e descobri que estou usufruindo muito mais. Dentro da minha marina em Paraty começou um negócio de compartilhamento de barcos que todo mundo deu risada há cinco anos atrás. A empresa começou com dois barcos e mais do que dobra o faturamento a cada ano. Hoje está com 25 barcos e tem um índice de ocupação de locação de mais de 82%. Os multicascos, os Catamarãs, são barcos caros, de mais de 2 milhões e têm 92% de ocupação média ao longo do ano. Nenhum hotel médio no estado de São Paulo tem essa ocupação. Esse é um mundo possível e está acontecendo e na minha atividade vai acontecer. Estou tentando entender também, não entendo completamente ainda, mas percebi que tudo isso tem a ver com a eficiência e a cultura do compartilhamento. É um caminho muito bacana e que vai fazer as pessoas se aproximarem outra vez

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